Os Evangelhos

05/12/2022

Os quatros evangelhos[1] são anônimos, pode ser que os títulos tenham sido acrescentados quando o conjunto dos quatro evangelhos começou a circular pela primeira vez, por volta do século II, a fim de distinguir um documento do outro. Embora seja confiável essas declarações de autoria, não devemos elevá-las ao nível de uma passagem inspirada. Há ainda menos certeza acerca das questões de data, destinação e lugar de origem.

Marcos

João Marcos, um cristão judeu, filho de Maria, de Jerusalém (Atos 12.12), primo de Barnabé, viajou junto a Paulo em sua primeira viagem missionária (Cl 4.10; Atos 12.25; 13.5). Se afastou de Paulo por um tempo (Atos 13.13; 15.37-39), porém sua amizade foi restaurada (2Tm 4.11).

Segundo Policarpo e Papias (discípulos do apostolo João), entre outros, o evangelho segundo Marcos é escrito de acordo com o que ele aprendeu do apóstolo Pedro[2], seu companheiro. Marcos não conheceu a Jesus pessoalmente.

O mais provável é que tenha sido escrito em Roma por volta dos anos 60 d.C.

Teologia

O Servo Sofredor. O evangelho de Marcos se divide em duas seções principais. A maior parte dos primeiros oito capítulos apresentam narrativas de ação concentrada, focadas no poderoso ministério de Jesus, destacando-se em particular a escolha dos discípulos e o assombro das multidões com suas obras poderosas.Na estrada para Cesaréia de Filipe, após a sequência em que Pedro confessa que Jesus é o Cristo (8.27-30), o Mestre de repente começa a ensinar sobre o seu futuro sofrimento e morte. Dali em diante, todos os eventos se orientam inexoravelmente para a cruz.

Uma sugestão moderna bem difundida é que as primeiras tentativas de contar a história de Jesus nos círculos gregos e romanos se concentraram na sua descrição como semelhante aos heróis semilendários da história greco-romana, divinizados em suas mortes. Marcos estava tentando manter em equilíbrio duas verdades essenciais: a glória de Jesus e a centralidade da cruz, tanto na vida de Jesus quanto na vida de seus discípulos (ver esp. Mc 8.31-9.1).

Títulos como "Filho de Deus" acontece em lugares estratégicos para realçar o papel exaltado de Jesus. Na abertura (Mc 1.1); na morte de Jesus (Mc 15.39); a voz divina se refere a Jesus como "Filho" no seu batismo e na sua transfiguração (Mc 1.11; 9.7); na boca de demônios, refletindo o conhecimento sobrenatural da identidade de Jesus (Mc 3.11; 5.7).

O outro título que Marcos apresenta em seu versículo de abertura é Cristo. Este é utilizado de modo mais cauteloso com o provável intuito de não atrapalhar o ministério sofredor de sua morte - um entusiasmo prematuro poderia subjugar sua missão, pois uma expectativa cristológica popular não daria espaço para o sofrimento do Messias. Em Marcos, mais do que em qualquer outro evangelho, Jesus com frequência ordena que não falem a ninguém sobre a sua identidade (Mc 8.30); A revelação através de parábolas não é possível "aos de fora" (Mc 4. 10-12); as confissões demoníacas são repreendidas (Mc 1.24-25,34; 3.12); e os milagres espetaculares não devem ser informados a ninguém (Mc 1 .44; 5.18-19,43 etc.).

Para Marcos, porém, o versículo 10.45 poderia ser o mais importante do evangelho, ao resumir a sua ênfase no percurso de Jesus para a cruz: "Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a vida em resgate de muitos". Embora Marcos nunca use a expressão exata, o conceito de servo sofredor (como em Is 52.13-53. 12) talvez melhor sintetize esse lado muito humano da natureza e missão de Jesus.

Sobre seus discípulos, lemos em Marcos sobre seus frequentes fracassos e mal-entendidos (Mc 4.11-13, 40; 6. 51-52; 9.14-29; 8.33), no entanto, mesmo quando não entendem, permanecem respondendo seu chamado (Mc 3.13-19; 7.17-23; 16.17).

As mulheres parecem mais avançadas do que o círculo interno dos doze homens (Mc 5.28,34; 7.29; 12.41-44; 14.3-9).

Escatologia iminente. Como primeiro evangelho escrito, Marcos ainda preserva uma esperança viva no breve retorno de Cristo, enquanto que os outros às vezes refletem uma sensação de demora (Mc 13.30); o único sermão longo de Jesus relatado por Marcos é escatológico (Mc 13).

A descrição negativa dos discípulos antes da formação da igreja, junto com a ênfase de Marcos sobre o caminho da cruz como precursor da glória, sugere uma preocupação em encorajar uma comunidade atormentada para uma eventual luta e para uma vitória que só se daria por meio do sofrimento.Considerando-se a expulsão dos cristãos judeus de Roma em 49 d.C., as crescentes tensões dentro da comunidade e com o governo depois do seu retorno, em meados dos anos 50, e a perseguição de Nero em 64-68 d.C., os cristãos romanos formavam um público muito carente de tal conforto e encorajamento.

MATEUS

O mais judaico dos evangelhos, de modo a sugerir que todo o AT aponta para Jesus e que os destinatários originais eram os cristãos judeus, no entanto, em pontos fundamentais ele também prenuncia a missão gentia tão claramente quanto qualquer um dos outros três.

As melhores evidências indicam que foi escrito um pouco depois de Marcos, porém antes do ano 70 d.C. A dominante orientação judaica do evangelho leva a concluir que o escritor era um cristão-judeu. A tradição (Papias, a evidencia externa mais importante) diz que Mateus também chamado Levi, cobrador de impostos convertido e um dos doze apóstolos de jesus (Mt 10.3; 9.9-13; Mc 2.14-17), é quem compôs esse evangelho. Sugere-se de forma plausível que, a primeiro momento, Mateus tenha compilado um esboço (o qual estudiosos chamam de Q; Lucas também teria feito uso dele) e posteriormente utilizado esse e, também, o evangelho de Marcos, e tradições mais distintivas próprias (estudiosos chamam de M) a fim de criar a versão de Mateus que temos hoje (Q+Marcos+M= evangelho de Mateus).

Teologia

Filhode Davi, rei e Messias real.Um dos títulos mais característicos para Jesus em Mateus é "Filho de Davi". Ele ocorre nove vezes, oito das quais sem paralelo em qualquer outro Evangelho. O título se ajusta à orientação judaica de Mateus e à expectativa convencional de um Messias da casa de Davi, que exerceria funções reais. Por isso Herodes temia um rei literal que usurparia o seu poder (apenas em Mt 2.1-12), e Pilatos quis saber se Jesus era "o rei dos judeus" (Mt 27.11; Mc 15:2; Lc 23:3; Jo 18:33-36).

Um filho exaltado de Deus.O uso que Mateus faz do termo sugere fortemente a divindade de Jesus. Na tentação (Mt 4.3,6), o demônio assume que Jesus é o Filho de Deus. Somente em Mateus os discípulos reconhecem apôs ele caminhar sobre a água (Mt 14.33). Igualmente, Pedro usa esse título em sua confissão (Mt 16.16). E, corroborando, Somente em Mateus Jesus é lembrado como sendo o Emanuel (Deus conosco; Mt 1.23/Is 7.14) que, no final, promete estar "conosco todos os dias" (Mt 28.20).

Sabedoria encarnada.Em Mt 12.42; 13.54, é destacada a sabedoria de Jesus. Em Mt 11.19, diz-se que ele comprova sabedoria de Deus. Tais referências têm sugerido a alguns o interesse característico de Mateus em retratar Jesus como a Sabedoria encarnada de Deus, baseando-se no modelo de Provérbios 8-9.

Senhor. Título significando, não apenas mais que um mestre, por diversas vezes o contexto sugere um ser divino que os socorre e pode ser adorado (Mt 8.2,6,25; 9.28; 2.2,8,11; 14.33).

Lucas

Lucas, "o médico amado", não judeu (Cl 4.10-14), é reconhecido como autor desse evangelho de modo unânime pela tradição cristã primitiva. Em suas viagens com o apóstolo Paulo, teve acesso às várias testemunhas que contemplaram os feitos de Jesus (Atos 16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1-28.16). Além do seu evangelho, escreve o livro de Atos como uma sequência, desenhando, assim, um relato da vida de Jesus e o crescimento da igreja primitiva.

Ao dirigir-se à Teófilo no início de sua obra (Lc 1.1-4), isso não significa que o livro foi escrito somente para ele. Teófilo, como participante da comunidade cristã a qual Lucas escreveu, pode ter sido o principal financiador dessa obra.

A datação mais provável é em algum momento antes do livro de Atos, e não mais tarde do que por volta de 62 d.C. Ele fez uso do "Proto-Mateus" (Q), do Evangelho de Marcos e, também, das tradições orais de testemunhas oculares coletadas em sua jornada (L): Lucas= Q + Marcos + L.

Teologia

A humanidade e a compaixão de Jesus. Embora Lucas preserve natureza exaltada de Jesus, nenhum dos títulos como "Cristo", "o Filho de Deus " ou "Senhor" assume uma proeminência. Antes, o que mais é destacado é a humanidade de Jesus, particularmente em sua associação com as diversas categorias de párias sociais e na compaixão por elas. Somente Lucas registra a parábola do bom samaritano (Lc 10.25-37) e a história dos dez leprosos que foram curados, em que apenas o leproso samaritano voltou para agradecer (Lc 17.1 1-19). Somente Lucas narra duas histórias em que os publicanos são os heróis: a parábola do fariseu e o publicano (Lc 18.9-14) e a conversão de Zaqueu (Lc 19. 1- 10). Há um número bem maior de mulheres em seu relato do que os outros evangelhos. E somente Lucas descreve o ministério itinerante de Jesus sendo auxiliado pelas contribuições de várias mulheres ricas que viajavam com ele (Lc 8. 1-3). Maior preocupação com os pobres ao anunciar o evangelho (Lc 4.18); em Mateus o "reino" é descrito como sendo dos "humildes de espírito" e em Lucas como dos "pobres" (Mt 5.3; Lc 6.20); Somente em Lucas vários ensinos contemplam os desfavorecidos (Lc 14.7-24) como também, a narrativa do homem rico e de Lázaro que justifica o mendigo (Lc 16.19-31).

Salvador. É interessante notar que "Salvador" corresponde ao título de Jesus mais característico em Lucas. As palavras gregas para Salvador e salvação (soter, sotéria, soterion) ocorrem oito vezes em Lucas, nove vezes em Atos e nenhuma nos demais evangelhos sinóticos (Lc 2.11; 19.10).

O Espírito Santo. O Espírito aparece consideravelmente com mais frequência em Lucas do que em Mateus ou Marcos. Cheios do Espírito com coragem em proclamar o evangelho (Lc 1.15,41; Atos 2.4;4.31).

...

A preocupação dominante acerca das posses materiais, que avança por Atos (Atos 2.43-47; 4.32-37), sugere que Lucas estava se dirigindo a uma comunidade cristã no mínimo um pouco mais próspera do que muitas, embora não isenta de pobres em seu meio. Ele estaria, portanto, apelando aos cristãos mais ricos para que ofertassem de maneira generosa e compartilhassem com aqueles irmãos e irmãs no Senhor mais necessitados. A compaixão de Jesus pelos párias, sua forma de relatar os eventos históricos do crescimento do cristianismo junto à comunidade mista envolvida (os romanos, os judeus, ricos e pobres, os gentios como um todo), dá apoio à ideia tradicional de Lucas ser um texto gentio destinado a uma comunidade, se não exclusivamente, principalmente gentio-cristã. Por certo que,leitores de quase todos os diferentes modos de vida têm encontrado em suas palavras algo a apreciar, pois o seu evangelho é com frequência considerado o mais universal de todos.

João

A evidência interna aponta para um indivíduo mencionado como "o discípulo a quem [Jesus] amava" (Jo 13.23; 19.26; 20.2; 21.7,20) e testemunha primária dos eventos desse evangelho (Jo 21.24). Provavelmente um dos três que os sinóticos descrevem como os seus seguidores mais íntimos (Mc 9.2; 14.33): Pedro, Tiago e João. Pedro é citado de forma distinta em duas ocasiões (Jo 20.2-9; 21.20-24). Tiago, o filho de Zebedeu, foi martirizado muito cedo para ser o autor desse evangelho (44 d.C., cf. Atos 12.1,2).

Uma tradição forte da igreja primitiva data o evangelho do final do primeiro século, talvez durante o reinado de Domiciano (81-96), quando João era um homem muito velho, ministrando em Éfeso. Testemunhos como de Papias, Policarpo (discípulos de João) e Clemente (discípulos do apóstolo Pedro) estão entre os mais expressivos.

Grande parte daquilo que é central em todos os três sinóticos está completamente ausente em João. No entanto, eles se encaixam perfeitamente. Primeiro, uma das razões de João parecer tão diferente é porque Mateus, Marcos e Lucas são muito semelhantes entre si. Segunda, Jesus fez tantas coisas que teve quatro autores escrevendo seus evangelhos sobre ele de forma independente e todos poderiam ter produzido livros tão diferentes uns dos outros como João o fez em relação aos sinóticos (Jo 21.25). É quase certo que João estava ciente das informações mais comuns e amplamente divulgadas sobre Jesus, e pode ter escolhido, de forma muito consciente, não repetir a maior parte delas.

Esse evangelho contém mais detalhes de tempo e espaço a respeito do ministério de Jesus do que os sinóticos. Por ex., somente a partir de João é que podemos determinar que o ministério de Jesus durou aproximado de três anos. E, assim como Marcos, João se divide em duas "metades": uma enfatizando as ações poderosas de Jesus (c. 1-11) e a outra refletindo sobre os eventos que conduziram a sua morte e ressurreição, incluindo ambos os eventos (c. 12-21).

Teologia

É significativo que os dois principais títulos usados para Jesus na declaração dos propósitos desse evangelho (Jo 20.31) sejam idênticos aos usados no versículo de abertura de Marcos (Mc 1.1) - o Cristo e o Filho de Deus. Mas "Filho" para João é ainda mais claramente identificado com a figura divina do que nos sinóticos. João 3.31-36.

Logos. Apenas João chama Jesus de "o Verbo" (gr. logos). Um termo muito usado para se referir ao modo como Deus ou os deuses se revelavam e comunicavam com humanidade. João pode muito bem estar explorando tal contexto diversificado para enfatizar que Jesus éa forma pela qual o Deus vivo e verdadeiro se revela e se comunica com o seu povo. É muito claro também que esse "Verbo se fez carne" (Jo 1.14)[3].

Cordeiro de Deus. João é o único autor do NT a chamar Jesus de o "Cordeiro de Deus" (Jo 1.29,36; e vinte e sete vezes no Apocalipse). O cordeiro sacrificial da Pascoa, mas também o cordeiro vitorioso, conquistador do Apocalipse (Ap 5.12).

Deus. Embora em nenhum texto de João, Jesus explicitamente faça a declaração: "Eu sou Deus", as asserções do evangelista a respeito de Jesus sugerem sua divindade. No prólogo, o logos estava "com Deus" e "era Deus" (Jo 1.1). Por sete vezes, Jesus se expressa por "eu sou", revelando sua natureza exaltada, algo que poderia ser entendido como uma presunção descabida e arrogante se, na verdade, não fosse divino em algum sentido. Assim ele se declara "o pão da vida'' (6.35), "a luz do mundo" (8.12; 9.5), a "porta da ovelha" (10.7), "o bom pastor" (10.11), "a ressurreição e a vida" (11 .25), "o caminho, a verdade e a vida" (14.6) e "a videira verdadeira" (15. 1). Ele afirma ser um com o Pai, num sentido que os judeus interpretam como blasfêmia - próximo demais a uma igualdade com Deus (Jo 10.30-33). Após a ressurreição, Tomé toca as cicatrizes de Cristo e exclama em adoração: "Senhor meu e Deus meu!" (Jo 20.28). Embora nos sinóticos exista claras sugestões da divindade de Jesus.

Trinitarismo. Nas palavras do Jesus de João é mais evidente. Ele insiste que está "no Pai" e "o Pai está nele" (Jo 14.11); que, quando partir, o Espírito o substituirá como "um outro Consolador", cumprindo muitos papéis idênticos aos dele (v. Jo14.16). A oração sumo-sacerdotal de Jesus fala da glorificação recíproca do Pai e do Filho (17.1-5).

O Espírito Santo como Paracleto. O Espírito Santo é até mais proeminente em João do que em Lucas. Em João 14-16 encontramos cinco papéis diferentes para o Paracleto: consolador (Jo 14.15-21), intérprete (Jo 14.25-31), testemunha (Jo 15.26-16.4), defensor, persuasivo (Jo 16.5-11) e revelador (Jo 16.12-16).

Ao que parece, João escreve a uma comunidade que precisava de ser protegida contra as heresias que estavam adentrando em seu meio. Heresias acerca da pessoa de Cristo (Jo 20.30-31).


[1] Maior parte desse acervo é extraído da obra de BLOMBERG, Craig L. Introdução aos Evangelhos: Uma pesquisa abrangente sobre Jesus e os 4 evangelhos. Ed. Vida Nova, São Paulo, 2009.

[2] Mais informação em BLOMBERG, p.160,162

[3]João 1.14 é um versículo crucial nesse contexto: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós". O logos não é uma mera visão ou fantasma: ele encarnou como um ser humano genuíno. Embora João seja mais conhecido por sua ênfase na divindade de Cristo, a doutrina do logos que se tornou sarx ("carne") também é uma importante lembrança da sua plena humanidade.

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