O Recenseamento De Davi
Em 1Crônicas 21:1 lemos: "Então, Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel." Já em 2Samuel 24:1 a Bíblia diz: "Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá." O cronista atribui a satanás a responsabilidade por incitar Davi a fazer o censo, o autor de Samuel a atribui a Deus.
Não que houvesse algo inerentemente errado no recenseamento (Nm. 1:1, 2; 26:1, 2); mas neste caso Davi parecia estar procurando segurança na força dos seus exércitos (1Cr 21.5) mais do que na fé nas promessas de Deus (1Cr 27:23 e Sl. 30:6). A glória de Deus não estava em vista, e tudo servia de inspiração para orgulho e arrogância.
"Tornou a ira do SENHOR a acender-se contra os israelitas..." (2Samuel 24:1), o povo tornou a errar contra Deus, fazendo-se necessário o agir de Deus como um pai amoroso que educa seus filhos amados. O Senhor escolhe corrigi-los através da figura do rei Davi, após um erro dele. Não fazia muito tempo que o único rei de Israel era O próprio Deus, que utilizava de vários homens que eram encarregados de cuidar de suas aldeias, "juízes" (Juízes 11.5), porem os israelitas pediram um rei humano (1Sm 8), o que aos olhos de Deus foi um tipo apostasia (1Sm8.7). Agora existia apenas um representante geral da nação. Os reis eram ungidos pelo sumo sacerdote, que, ao menos simbolicamente, refletia o reinado de Deus (1 Sam. 8:14; 10:1; 15:1; 16:12; 2 Sam. 2:4; 5:3; I Reis 1:34,39,40). Após algum tempo no trono, Saul foi rejeitado por Deus. Davi passa a ser considerado o monarca ideal. Diante de tudo isso podemos entender os motivos divinos ao usar a figura do rei para lidar com todo o povo de Israel, desse modo Ele evitava, até mesmo, uma possível idolatria para com o rei mostrando seus erros para o povo.
Mas a polemica nesses versículos é a aparente contradição sobre a influência sofrida por Davi - se por Deus ou por satanás - para o desejo da realização do censo. Encontramos na Bíblia vários outros textos paralelos que podem aparentar ser contraditórios, porem, na verdade são complementos uns do outros. Várias testemunhas de um mesmo incidente recordam-se dos detalhes de maneira ligeiramente distintas uns dos outros, sintetizam, generalizam e reproduzem de forma diferente os detalhes daquilo que presenciaram. Um evangelho relata apenas um suplicante - Bartimeu - pelo dom de visão à Cristo quando de sua visita a Jericó (Mc 10.46). Mateus 20.30 recorda que havia na verdade dois homens, embora Bartimeu fosse o porta-voz. Com relação a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, Marcos 11.2 menciona apenas um jumentinho, no qual ninguém jamais havia montado. Em Mateus 21.2, ficamos sabendo que o jumentinho estava amarrado próximo a sua mãe, e que na verdade, dois jumentos tiveram parte no episódio. Tais variações são um fenômeno comum nos evangelhos e também ocorrem nos livros de Reis e Crônicas. Na Septuaginta (LXX) - a versão em grego do Antigo Testamento - o título das Crônicas é Paralipomena, que significa "assuntos (previamente) omitidos" em Reis e Samuel. O próprio nome do livro expressa que suas informações são complementos dos antigos relatos.
Devemos lembrar também, que a teologia dos hebreus, anterior ao exilio babilônico (onde inclui a autoria de 2Samuel), era fraca quanto a causas secundárias, pelo que todas as coisas foram enviadas para serem de Yahweh, tanto o bem quanto o mal. O judaísmo tinha uma espécie de determinismo inquestionável, que reconhecia somente Uma Causa (Deus). Por conseguinte, qualquer coisa que acontecesse era considerada proveniente daquela causa, mesmo que fosse má. Portanto, se satanás (causa secundária) fizesse alguma coisa e provocasse tribulação, o ato só poderia ser atribuído, em última análise, a Causa Única (Deus), pois os filhos de Israel não reconheciam que satanás poderia ser uma causa independente. Um exemplo é a atribuição a Deus, tanto dos informantes como por Jó, das desgraças realizadas por satanás (Jó 1.12,16,21). Ao longo do caminho, os intérpretes começaram a perceber que Deus, realmente, não era culpado de todas as coisas que aconteciam, conforme os antigos pensavam. Há outras causas por trás dos acontecimentos.
Todavia há também a possibilidade de que o autor de 2Samuel estaria relatando, de maneira despreocupada, seu entendimento quanto a abrangência divina sobre todas as coisas, e Sua maneira sábia e inalcançável de agir sobre as circunstancias. O escritor não fez questão de mencionar as ações de satanás, mas sim, de expressar as intenções divinas e Sua soberania naquele acontecimento, onde Deus agiu trazendo seu povo novamente ao relacionamento mais saudável e de confiança, que deve ser depositada somente Nele e não nas circunstancias. Vale também lembrar que, o autor do livro em questão, menciona que Davi reconheceu que errou, que pecou contra Deus, e seu pedido de perdão (2Sm 24.10). Seria tolice, pra dizer o mínimo, Davi achar que pecou contra Deus, quando na verdade se estava cumprindo aquilo que Ele o ordenara, e pior, o próprio Deus castigar uma nação por isso. Aceitando que Davi errou e admitiu sua falta nos cabe indagarmos o que o narrador desejava que seus leitores captassem com sua maneira provocativa de introduzir o incidente. Não estaria ele chamando a atenção para a maneira misteriosa como o plano de Deus para a história humana é levado a efeito mesmo nos erros de seus servos?
O relato de 1Cr 21 mostra como o pensamento teológico se desenvolveu ao longo dos anos, atribuindo a "satanás" ou a um "adversário" o que anteriormente era atribuído ao Senhor. O período pós-exilico em geral tinha muito mais interesse em seres espirituais invisíveis, um interesse que foi separadamente continuado tanto no judaísmo como no Novo Testamento. Embora o pecado seja um problema humano, ele possui raízes espirituais mais profundas do que podem ser tratadas apenas através dos propósitos soberanos e da intervenção direta de Deus. Aqui, Satanás não passou de um instrumento de Deus, sendo usado para executar o castigo que Israel merecia por causa dos seus pecados, levando-lhes ao arrependimento e ao retorno à comunhão com Ele. A Bíblia diz que Deus permite a um crente que não esteja em comunhão com Ele tomar uma atitude tola e desagradável, de modo que após ter colhido o "fruto amargo" de seu delito, seja submetido ao julgamento disciplinar cabível e, assim, reconduzido de espírito purificado a uma comunhão mais íntima com Deus. Certamente foi esse o caso de Jonas, que tentou fugir ao chamado de Deus tomando um navio em direção a Társis. O Senhor usou a tempestade e o grande peixe para tira-lo de seu curso e traze-lo de volta ao caminho da obediência. Outras passagens falam de um "endurecimento" suscitado por Deus por causa da rejeição prévia da verdade e da vontade divinas (ver artigo Endurecimento Do Coração Humano). Romanos 1:21,22 faz referencia ao mergulho da humanidade na idolatria e na imoralidade: "porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos". Nos versículos Rm 1.24,25 lemos: "Por isso Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos dos seus corações, para a degradação dos seus corpos entre si. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém." Até a ira do homem e Satanás acabam por cumprir os propósitos divinos.
Sabemos também que é de interesse especial de satanás incentivar e intensificar todos os impulsos do homem que promovam a desobediência a Deus. O diabo ou suas legiões estão sempre prontos a nos impelir a pecar. Há uma passagem clássica que mostra com muita clareza o conjunto atuante da permissão divina e da maldade do inimigo. 2Tessalonicenses 2:8-12 lemos ali que, nos últimos dias, antes da segunda vinda de Cristo, o "perverso" será revelado, aquele cujo a vinda é "segundo a ação de satanás". Diz o texto, "por essa razão Deus lhes envia um poder sedutor, a fim de que creiam na mentira, e sejam condenados todos os que não creram na verdade, mas tiveram prazer na injustiça". A verdade é que "Deus não pode ser tentado pelo mal, e ele mesmo a ninguém tenta" (Tia. 1.13), o que reflete uma teologia mais recente, a qual já reconhece as causas secundárias. Deus, pois, não é a causa de todas as coisas, conforme alguns supõem tolamente.
Na última parte do reinado de Davi, tanto o rei como a nação passaram a confiar cada vez mais no numero crescente de indivíduos e de recursos do povo, a tal ponto que foi necessário impingir-lhes um julgamento disciplinar para trazer-lhes de volta à dependência de Deus. Por isso que Deus permitiu a satanás encorajar Davi a fazer o recenseamento. Davi não resistiu à tentação mesmo podendo resisti-la. Tão logo o recenseamento concluído, Deus enviou uma praga terrível a nação dizimando significativamente a população. O povo se arrepende, e, Deus em Sua misericórdia, sessa o castigo. Desse ponto de vista, não há contradição entre 1Cr 21 e 2Sm 24. Ambos os relatos são verdadeiros, uma vez que, pelo grande interesse de Deus na restauração do povo de Israel, é permitido a tentação de satanás.
Pr. Eder L Souza.
Referências
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